Pela manhã

As coisas que dizíamos, as coisas que fazíamos, não tinham sentido, nem lógica, nem razão. Estávamos ambos envoltos numa loucura cega, que nos levava a agir por instinto e não nos deixava parar para pensar.
Se ao menos tudo fosse mais simples, se não tivesse de olhar para trás e tentar justificar tudo o que fiz, então tudo seria menos penoso e eu poderia desfrutar daqueles momentos, daquela insanidade. Mas a nossa embriaguez não alcoolicamente induzida, cedo chegaria ao fim, e com ela a culpa, o desprezo, a revolta e a repulsa.
Não queria acordar no dia seguinte, com nojo de mim mesma, e acima de tudo, não queria ver o asco nos olhos dele, quando me visse pelo que realmente sou e eu olhasse para o mais fundo da sua alma.
Estávamos presos numa infinita encruzilhada, num labirinto sem fim e cujo porta de entrada se havia fechado assim que entráramos nele.
Queria perder-me com ele. Ai se queria!
Deixá-lo tocar-me, amar-me, seduzir-me, fazer-me derreter debaixo dele, perder-me na loucura, mas nenhum dos dois tinha a força para dar o primeiro passo. O passo decisivo! Pois ambos receávamos o final.
Abraça-me!
Beija-me!
Mais não me odeias pela manhã.
Só que um não vem sem o outro, pois não?

O retrato

20_retratoGostava de fotografar a tua alma, mas tenho medo do que possa ver.
Será que mudarei a minha opinião acerca de ti quando a lente da câmara captar a tua verdadeira forma?
Será que é justo julgar-te dessa forma?
Tu que sempre te mostrastes pronta a ajudar todos, que estás rodeada de amigos e que ao mesmo tempo pareces tão só.
Tu que sorris tantas vezes e ao mesmo tempo nunca sorris verdadeiramente.
Será que tenho o direito de violar o teu íntimo desta forma?
“Então o que vai ser hoje?”
Sorris, mas não o sentes. Consigo vê-lo nos teus olhos.
Não o fazes por mal. Acredito que não. Mas por detrás de toda essa aparente felicidade está um manto de tristeza.
O que foi que te feriu tão profundamente?
“É hoje que tiras o meu retrato?”
Pondero a tua questão. Sinto vontade de dizer que sim, mas temo fazê-lo.
“Começo a sentir-me menosprezada. Serei eu a única pessoa da vila a quem nunca tiraste uma foto?”
Sim és. Mas nunca to direi.
“Achas que te vou dar cabo da película?”
Duvido que esse fosse o problema. Só não quero é estragar a imagem que tenho de ti.
Quero compreender-te, mas tenho medo. Medo de ver a verdade e nunca mais conseguir olhar-te do mesmo modo.
Não quero menosprezar-te. Não quero alienar-te como fiz a tantos outros depois de os capturar em filme.
Aquelas fotos que nunca deveriam sair do meu estúdio. Aquelas que todos acham ser os melhores retratos da cidade, mas que aos meus olhos mostram todas as barbaridades e toda a podridão de cada um dos retratados.
Tu foste a única que permaneceu imutável depois de tantos anos de ausência. Ages da mesma forma, sorris da mesma forma. O teu coração de ouro mantêm-se intacto. Mas … o brilho desapareceu. Aquele brilho que rendia qualquer um imóvel e que te tornava tão única.
Quatro anos de ausência trouxeram muitas mudanças à minha vida. Quando regressei à vila, tudo parecia semelhante, mas no fundo estava tudo diferente. Todos têm algo a esconder e eu acabei por descobrir a podridão de todos eles.
Tornei-me apático já que não queria criar inimizades.
Tento não pensar no que sei, no que vejo, no que todos escondem debaixo de uma manto de normalidade que não faz mais que camuflar a verdade ao de leve, sem nunca esconder de realmente o que quer que seja.
Tu também deves ter os teus podres. A diferença é que não os quero conhecer. As tuas falhas, quero que permaneçam só tuas, a menos que querias partilhá-las comigo.
Tantas vezes ergo a câmara na tua direcção.
Hesito com o dedo sobre o “Capture”.
Os minutos passam e eu pareço uma estátua presa no tempo.
Acabo sempre por recolher a ferramenta, sem ter pressionado o botão uma só vez.
Gosto deste relacionamento. Deste desconhecimento total que tenho em relação a ti. Tão diferente do que tenho com os restantes. Tão mais confortável. Assustador, sim, mas também extremamente confortável.
“Promete-me que um dia vais tirar o meu retrato e que será o melhor de sempre.”
Por momentos aquele brilho característico regressa ao teu olhar. Tenho a certeza que o meu rosto mostra surpresa.
“Prometes?”
Afagas levemente o teu ventre proeminente. Não é intencional no meio da conversa, mas de alguma forma esse gesto faz desaparecer o brilho novamente.
Quero perguntar-te tantas coisas sobre a criança.
Quem é o pai?
Onde é que ele está?
Porque vos abandonou?
Mas sou um covarde e por isso mantenho-me em silêncio.
Será por isso que te sentes tão à vontade comigo? Porque não te questiono como todos os outros fazem. Todos os curiosos e coscuvilheiro que não querem mais do que ter razões para se deleitar na miséria dos outros, ao invés de ponderar sobre a sua.
“Sabes…”
A tua pausa parece durar uma eternidade.
“Gostava mesmo que tirasses uma foto de nós os dois. Só tu conseguirias captar verdadeiramente o que sinto por esta criança.”
Fico abismado enquanto observo o brilho regressar. Sempre soube que nutrias um amor incondicional pelo bebé que carregas no ventre, mas também era por ele que mostravas a maior tristeza que os teus olhos poderiam carregar.
Voltas o teu olhar para mim e suplicas-me, sem palavras, que realize o teu desejo.
Nem eu seria capaz de recusar.
Pego numa velha cadeira que está encostada a um canto e trago-a para o pé de ti, atrás do balcão.
Peço-te que te sentes, da forma mais confortável que puderes.
Afastas ligeiramente as pernas e viras-te um pouco de lado, apoiando as costas na cadeira que chia. As tuas mãos repousam suavemente sobre a tua barriga de quase nove meses.
Sempre pensei que fosses daquelas mulheres curiosas que não esperaria até ao nascimento para saber o sexo do bebé, mas surpreendeste-me ao revelar que não pretendias fazê-lo.
Relaxa.
Ficas silenciosa.
É estranho.
Vejo-vos através do visor da câmara.
Hesito.
O teu leve sorriso e o brilho nos teus olhos … quero aprisioná-los na película, mas temo o resultado.
Pressiono o botão.

No meu estúdio escuro, revelo cuidadosamente o rolo que usei para tirar fotografias tuas.
Não sei o que deva sentir, pois depois da minha relutância inicial, acabei por não conseguir parar de te tirar fotos. Tu que, divertida, mudavas de posições e esbanjavas sorrisos como já não te via fazer desde que regressara à vila, sete meses atrás.
Estranhamente não sinto grande receio enquanto espero que as películas sequem. Tento não olhar fixamente para elas, pois só quero vê-las fora do estúdio.
Pode ser ridículo, mas não quero descobrir-te no mesmo local que vi todos os outros por aquilo que realmente são.
Saio do quarto, com as fotos na mão. Sento-me no sofá e respiro fundo. Não há como negar que estou nervoso.
Talvez não devesse vê-las a fundo.
Seria melhor entregá-las e nunca lhes prestar atenção.
Lentamente baixo o olhar para as fotos.
Nada.
Não há nada a sujar a imagem, nada a rodear-te em obscuridade.
Nada.
Nunca tinha visto uma imagem capturada tão limpidamente. Nunca vira um sorriso tão verdadeiro e uma completa ausência de ressentimentos, culpas e tristezas.
Seria possível que eu estivesse todo aquele tempo a pensar demais?
Será que tu não tinhas mesmo nada a esconder?
À medida que visualizo cada uma das tiragens, acredito que sim. Que nada te havia manchado e que tu conseguias assim criar a mais bela das fotos.
Até que cheguei à última. Aquela que tinha sido, de verdade, a primeira a ser tirada, quando ainda não estavas suficientemente descontraída.
A sombra negra que paira sobre ti e alcança o seu ventre, com um sorriso assustador no rosto … eu reconheço aquela forma. Sei quem era pois já o tinha capturado com a minha câmara e sabia as coisas que ele tinha feito.
O meu coração acelera o compasso.
Todo o meu corpo treme e sinto uma raiva tão grande que penso não conseguir contê-la.
Aquela besta!
A morte seria punição demasiado leve para ele.

A campainha toca, retirando-me à força do meu estado odioso.
Sinto nojo de mim próprio, pois por momentos tinha imaginado as coisas mais horrendas e tinha arquitectado planos mirabolantes para colocar tudo isso em prática.
Não ia fazê-lo.
Não podia fazê-lo.
Tu és quem devia odiá-lo, e mesmo assim escolheste perdoá-lo. Quem sou eu para negligenciar essa decisão?
Abro a porta e sinto-me ainda mais enojado ao aperceber-me que tenho de forçar um sorriso para receber-te. Tenha vergonha de mim mesmo.
“Disseste-me que podia passar por cá quando fechasse a loja.”
Entras, sem grandes cerimónias. Afinal já conheces os cantos à casa.
“Já estão prontas?”
Vês o monte que espalhei na mesa da sala e pareces brilhar de excitação.
“Posso vê-las?”
Tenho a boca seca. Limito-me a acenar e tu caminhas o mais rápido que podes até lá. Sentas-te e reparo que tens muito cuidado para não bateres com a barriga na mesa. O bebé deve estar quase a nascer. Essa criança que nasceu de uma noite que te marcará para sempre.
“UAU! Estão lindas.”
Posso apenas imaginar pelo que tenhas passado.
És muito mais forte do que alguma vez te julguei. Sinto vergonha por ter sequer ponderado a tua fraqueza, a tua vergonha. És mais do que alguma vez poderei desejar ser e só espero nunca te magoar.
“Não sei como consegues. Eu nunca fui fotogénica, mas estão … estão … olha nem sei.”
Estão muito aquém da realidade, essa é a verdade.
“Podes colocar esta em tamanho maior? Quero pendurá-la lá na loja.”
Escolheste bem. Não só a foto capta uma grande parte do teu estabelecimento como tu irradias de beleza nela.
“Estou indecisa. Quais devo aumentar?”
Aumenta-as todas.
“AHA! Não posso. Onde as ia colocar?”
Podes ter a certeza que ficarão penduradas nas paredes do meu coração para sempre.
Sou mesmo covarde.
Durante todo este tempo tive medo. Medo de te ver realmente. Medo de me ferir.
Agora que sei a verdade, tenho o mesmo medo, somado ao medo de te magoar mais do que alguma vez poderia a mim mesmo.
“Vais pôr alguma destas exposta na tua galeria?”
Não tenho tempo para te responder que sim. Claro que sim!
“AHA! Claro que não. Tens fotos de gente tão mais bonita. Porque havias de ocupar um espaço comigo?”
O teu riso não é nervoso, nem falso. É como música.
É óbvio que vou expor-te. És a minha obra-prima, a única para a qual consigo olhar sem ter de camuflar o meu asco, a minha repulsa. Podia esconder-te dos olhares alheios, mas estaria a ser egoísta.
Vou colocar-te no pódio da galeria, em tamanho três vezes maior que todos os outros.
“Não brinques.”
Nunca.
“A sério? Ah, mas isso é muito embaraçoso.”
Só quero que todos vejam o que eu vejo. Nada mais.
“Estás a deixar-me corada. AHA!”
Este último riso já é nervoso, mas não soa falso.
O teu rosto brilha um rosado tão teu, que já não via à mais de quatro anos. Tinha-me perguntado onde ele tinha ido.
Ainda tens o hábito de conciliar as tuas bochechas vermelhas com as mãos.
Não mudaste quase nada.
Não!
Mudaste muito.
Para melhor …
“Lá estás tu outra vez.”
Quero abraçar-te, mas não sinto que seja o momento apropriado. Ou talvez seja e eu esteja a pensar demasiado sobre as coisas.
Tudo seria mais fácil se eu soubesse ao certo como reagirias, mas tu consegues sempre surpreender-me e por isso temo mover-me demasiado depressa.
Só lá colocarei a foto se me deres permissão. Se não quiseres, basta dizeres-me.
“Bem … não sei … achas mesmo que vale a pena?”
Nunca me senti mais orgulhoso de uma foto. Mas se não estiveres à vontade com isso, eu limitar-me-ei a guardá-las na minha colecção
“Isso é ainda mais embaraçoso.”
Viras o rosto para onde não posso ver a tua expressão.
Não sei como devo interpretar essa tua resposta.
O silêncio toma conta de nós e sinto que devo dizer algo, fazer algo para o quebrar.
Temo arrepender-me mas os meus braços já rodeiam os teus ombros antes mesmo que me dê conta do que estou a fazer.
Ficas tensa.
Relaxas.
Não fazes qualquer movimento para me afastar e eu deixo-me ficar, sentindo o perfume delicioso a jasmim que sai dos teus cabelos.
Talvez seja melhor mantê-las só na minha colecção.
“É capaz de ser melhor.”
Fechas os olhos e recostas-te na cadeira e nos meus braços.
Não te largarei até que me obrigues a fazê-lo.


Nota: Esta história faz parte do universo de “Alma” um projecto meu que começou por ser uma novela gráfica, mas que provavelmente terminará em romance.

Nota 2: A pessoa na fotografia é uma amiga. Espero que não leve a mal.

Post-it

16_post-itOs números no despertador piscavam freneticamente e o som da estação de rádio sintonizada preencheu o quarto, vagamente iluminado pela luz do amanhecer.
A figura que se encolhia confortavelmente entre lençóis e cobertores, moveu-se graciosamente e sentou-se na cama com um enorme sorriso a preencher-lhe os lábios. Esticou os braços e cruzou-os atrás da cabeça, soltando a frase que iniciava todos os seus dias.
“Bom dia mundo!”
Com leveza saltou do leito e caminhou pelo chão até á casa de banho. Lavou o rosto com água fresca e esfregou os dentes enquanto murmurava uma qualquer canção que tocava ainda no rádio do seu quarto. Regressou ao quarto para vestir umas calças de ganga e uma blusa amarela. Desligou o despertador e foi para a pequena cozinha do seu apartamento, preparando, sem pressas, um batido de frutas e torradas com manteiga. Quando terminou pegou na sua bolsa, pendurada no bengaleiro da entrada, e saiu de casa com o sorriso ainda plantado no rosto.
Entrou no metro subterrâneo e cerca de meia hora depois chegou ao seu destino. As portas abriram-se e uma multidão saiu ao mesmo tempo, quase abalroando-se, mas ela manteve-se calma e esperou que quase todos saíssem e depois pisou a plataforma, antes que a multidão contrária entrasse de rompante com medo que as portas se fechassem e o transporte seguisse viagem.
Subiu para a superfície e atravessou a rua até chegar ao edifício onde passava grande parte dos seus dias. Entrou no elevador, com mais três pessoas que cumprimentou fervorosamente, subiu ao 12º andar e saiu frente a um balcão com as letras “recepção” embebidas na madeira da sua base.
“Bom dia Patrícia, Jorge!”
A mulher de trinta e seis anos, com cabelos ruivos e olhos castanhos, voltou-se para a recém-chegada e sorriu.
“Bom dia, linda!”
O Jorge, um homem de trinta anos, cabelos negros e olhos como azeitonas, continuou a fazer o seu trabalho, limitando-se a erguer os olhos cansados e abanar a cabeça levemente enquanto libertava um leve “Bom dia!”
Ela continuou a sorrir-lhe abertamente, entrando nos escritórios e dirigindo-se à sua secretária, cumprimentando todos por quem passava e mesmo os seus colegas que estavam a trabalhar no outro extremo do salão e que erguiam os braços no ar em jeito de resposta.
Ligou o computador e pendurou a bolsa nas costas da cadeira onde se sentou e que fez girar uma e outra vez, assim como um ritual com que iniciava o trabalho todos os dias.
Colocou os auriculares e ajeitou o pequeno microfone que envolvia a parte esquerda do seu rosto. A sua secretária estava bastante aprumada, com os papéis todos alinhadas e uma ou outra caneta espalhadas pela mesa de vidro. Num dos cantos do seu cubículo, havia uma montanha de post-its das mais variadas cores.
O dia correu dentro da normalidade.
Ela atendia chamadas com toda a simpatia e, por mais furiosas que algumas pessoas estivessem com assistência técnica ou com a qualidade dos produtos, a sua voz enternecedora acabava por ter efeitos relaxantes e a conversa acabava sempre amavelmente. Também ajudava muito a isto, o facto de ela fazer de tudo para resolver os problemas que os clientes lhe apresentavam. Não descansava enquanto não conseguia deixar o cliente satisfeito por inteiro e era por essa razão que continuava na empresa depois de tanto tempo, já que a grande maioria dos seus colegas saia ao fim de seis meses ou um ano.
Ela adorava o seu trabalho, aliás, ela mesma diria que adorava qualquer trabalho. O segredo estava em fazer com gosto e ver o lado bom das coisas, algo que a maioria não estava a habituado a fazer.
O trabalho ali era por turnos e muitos dos seus colegas só trabalhavam em part-time, por isso ela estava sempre a ver entrar e sair pessoas, recebendo-as a todas com uma alegria contagiante.
Quando finalmente o seu turno chegou ao fim, ela desligou o computador e colocou a bolsa no ombro, retirando depois um dos post-its vermelhos da pilha no canto da mesa.
Dirigiu-se novamente à recepção, despedindo-se de todos os que ainda se encontravam no salão, que já não eram muitos graças á hora tardia. Olhou para trás do balcão e não viu ninguém, algo que estranhou. Por norma o Jorge saia sempre depois dela e só nessa altura a recepção ficava vazia.
A perguntava que pairava na sua mente foi rapidamente respondida quando o homem em questão surgiu no corredor da direita, trazendo consigo uma garrafa de água fresca. Tinha ido buscá-la à cantina, com certeza!
“Pensei que já te tinhas ido embora.” – disse com um grande sorriso ainda estampado no rosto.
Ele limitou-se a olhá-la ao de leve e prosseguir para detrás do balcão, bebendo um gole da garrafa que trazia na mão, sem se dignar a responder-lhe e afastando-se dela o mais que podia.
“Não está na hora de saíres? – Ela contornou o balcão e aproximou-se dele.
“Quem te deu autorização para entrares aq-…” – As palavras dele foram interrompidas quando ela elevou a sua mão à testa dele e deixou lá colado o post-it vermelho que transportara até ali.
“Porra! Outra vez?”
Ela soltou uma gargalhada sentida e voltou para a frente do balcão.
“Estiveste muito mal humorado hoje. Vi-te a ralhar com a Célia, a queixares-te ao João e ainda resmungaste por causa do almoço. Achei que precisavas de um pouco de cor na tua vida por isso hoje é o dia do vermelho.”
O rosto dele estava corado e ele retirou o intrusivo papel aderente que decorava a sua testa. – “Ninguém pediu a tua opinião!”
“Estás a ver o que digo? Estás outra vez a falar com quatro pedras na mão. Relaxa!”
Não era a primeira vez, aliás, dir-se-ia que era um hábito aquele joguete do post-it. Todos os dias, no final do turno, ela lhe colava um papel colorido no corpo, conforme o seu comportamento durante o dia. Maioritariamente eram de cores vivas, pois ela achava sempre que ele precisava alegrar-se mais e, na sua mente, aquele oferenda colorida ajudá-lo-ia a isso.
“Se parasses de fazer este jogo dos post-its todos os dias, talvez eu fosse mais benévolo contigo. Aliás … eu não te vejo a colares papéis na cabeça dos outros. E olha que há alguns que bem precisavam de uma cor.”
“Andas muito observador …”
O rosto dele ficou ainda mais vermelho. – “Não penses que presto especial atenção a ti!”
“Não?”
“NÃO!”
“Tens a certeza?”
“Absoluta!”
“Vais descer?”
“Contigo?”
Ele não tinha pensado antes de responder em forma de pergunta, mas arrependeu-se rapidamente ao ver o sorriso, agora matreiro, que cobria os lábios dela.
“É sexta-feira, lembras-te?”
“E o que quer isso dizer?”
“Que amanhã não temos hora para nos levantar…”

Submetido ao desafio “A cor dos meus dias” da Fábrica de Histórias

P.S.: Ando a treinar os romances já que pretendo escrever uma colectânea de contos deste género (já cá falei do “Através do vidro”). Confesso! Não é o meu forte … mas com treino hei-de chegar lá!

Efémera

12_efemeraBem dizem que um azar nunca vem só!
Se me contassem que o mundo desabaria aos meus pés num só dia, eu não acreditaria, mas aqui estou, desfazendo-me no meu próprio arrependimento, assoberbado pela minha estupidez e a colher os frutos podres que advieram das minhas plantações.
Costumam dizer a cada qual o que merece, mas eu acho que não fiz nada para merecer isto. Ou será que fiz sem me dar conta disso? Por vezes as nossas acções tem consequências mais profundas do que aquelas que prevemos.
Maldita hora em que decidi enfiar-me de cabeça nesta merda! O que é que vou fazer agora?

Esta gente toda a passear no parque, como se a vida não pudesse ser melhor.

Não sejas egocêntrico! Toda a gente tem problemas, mas também tem direito a dar um passeio sem se preocuparem com as coisas mais insossas da vida.
Claro que sim! Eu é que estou para aqui com pena de mim próprio, sem saber que passo dar a seguir ou se haverá um a seguir.
Que vergonha! Compõe-te! Afinal és um homem ou um rato?

Rato

Acho que vou deixar-me ser um por mais uns momentos. Afinal não estou a incomodar ninguém, pois não?

Aquele cão não está a pensar fazer o que eu …
AH! Raios! Baba de cão! EW! Tudo o que eu precisava neste momento …
“Magui, pára!”
Não acha que já vem tarde minha senhora? Deixa a cadela solta e depois ela põe-se a lamber estranhos. Yark!
“Você está bem? Esta cadela tem a mania de saltar para cima de toda a gente.”
Se quer pedir desculpas diga-o! Não olhe para mim com esse sorriso genuíno que eu assim nem consigo ficar verdadeiramente zangado.
“Não se preocupe. É bom saber que pelo menos os animais de quatro patas ainda gostam de mim.” – Não era nada disto que eu queria dizer!
Que gargalhada tão contagiante! Raios! Porque é que me estou a rir com ela? É suposto estares furioso com o mundo.
“Tens muito sorte Magui, por este senhor ser tão simpático, senão corrias o risco de ficar de castigo, menina mal comportada.”
Nunca pensei que uma voz pudesse soar tão doce. Que estranho …
Hey! Não precisa ir-se já embora. Eu estou a gostar da sua vossa companhia.
“Espero que agora já esteja mais animado.”
“Que quer dizer?”
“Bem … esta cadela parece sentir-se atraída pela tristeza das pessoas. E ela parece ter o dom de alegrar essas pessoas. Eu sei que parece estranho, mas é a verdade!”
Mas não foi a cadela que me alegrou. Foi você! Com esse sorriso e essa voz que parece preocupar-se … você, com essa estranha magia que a rodeia, capaz de, em segundos, fazer-me esquecer porque estive horas sentado neste banco de jardim.
“Só quero dizer-lhe que o que quer que esteja a atormentá-lo há-de passar. Afinal, tudo na vida é passageiro!”
“Obrigado!”
“Não tem nada que me agradecer.”
Tenho sim! Mais do que julgaria possível.
Já se vai embora?
Será que voltarei a vê-la?
Se a deixar escapar agora será que a maldita escuridão não voltará para me consumir. Por uma merda sem significado nenhum?
Não vá!
Eu não quero que você seja mais uma das coisas efémeras da minha vida.

“Espere!”

Texto inspirado pelo desafio “Feiticeiras” da Fábrica de Histórias.

Dois amores

08_dequemgostomaisEspecial Dia de S. Valentim (Dia dos Namorados)
Rodou a torneira da água quente, com a mão esquerda, e cortou a circulação da água para a banca. Sacudiu as mãos e alcançou o pano da louça que estava pendurado na porta do armário à sua direita, para limpar as mãos levemente. Levou as mãos às suas costas e desfez o nó que prendia o avental florido, pendurando-o de seguida num pequeno prego colocado atrás da porta da cozinha. Apagou a luz do compartimento e atravessou o corredor até chegar à sala de estar.
Ele estava sentado no sofá, ou melhor, quase deitado, tal era a sua posição desleixada em frente ao televisor. O comando que segurava com as duas mãos, sofria com o constante impacto dos seus dedos hábeis, já tão acostumado às formas ergonómicas do acessório.
Ela suspirou e aproximou-se lentamente. O ecrã brilhava com as cores vivas dos gráficos do jogo que ele tinha adquirido nessa mesma tarde, quando tinham ido ao centro comercial, supostamente para passarem a tarde juntos, comemorando o “Dia de S. Valentim”. No entanto, esse passeio romântico, e tão pouco usual, rapidamente tinha chegado ao fim. Maldita hora em que tinha dado a sugestão de fazer o jantar em casa dele! A refeição tinha corrido muito bem, à luz das velas, com um menu caprichado e feito com muita dedicação. Tinha sido, no entanto, um suplício fazê-lo ir para a mesa. Enquanto ela tinha estado enfiada na cozinha a preparar tudo, ele tinha aproveitado para iniciar a jornada no novo jogo, o que resultou nuns quinze minutos a tentar convencê-lo a sentar-se à mesa para comer. E agora, que ela tinha ido lavar a louça, ele tinha voltado ao lugar que tanto adorava: O sofá em frente à consola e à televisão.
“Jorge, vamos ver o filme que alugamos?” – Sentou-se no braço do sofá branco, de pele, inclinando-se levemente na direcção do homem que continuava de olhos fixos no ecrã.
“Agora não! Estou ocupado!” – A voz dele mudava sempre que estava com a cabeça nos jogos. Como se ficasse possuído, como se fosse engolido e não tivesse pretensões de lutar para se libertar.
“Mas nós escolhemos o filme juntos e, de qualquer das formas, temos de o devolver amanhã por isso temos de o ver hoje.”
Ele nem se dignou a responder-lhe, o que pareceu irritá-la.
“Jorge? Vá lá!”
“Já disse que não! Deixa-me em paz!” – Mais uma vez ele não desviou a atenção para ela.
Ela levantou-se, furiosa e começou a caminhar pela sala, passando propositadamente em frente ao televisor, impedindo assim a visão, mesmo que momentaneamente, do namorado.
“Hey! Pára lá com isso!”
Ela parou e, arqueando os ombros, olhou-o com completo desdém, como que intimidando-o. – “Mas afinal tu gostas mais de mim ou do porcaria do jogo?
Ele ficou um pouco zangado, mas depois de uma pequena pausa, respondeu com a maior sinceridade do mundo. – “Gosto dos dois!”
Ela ficou abismada, de boca aberta, a olhar para o homem a quem dedicara o seu amor nos últimos dois anos. – “Como assim? Isso não faz sentido nenhum!”
“Mas eu amo-te a ti e amo os meus jogos. Se me perguntas de quem gosto, essa é a resposta eu te posso dar.”
Ela não podia crer no que estava a ouvir. – “Mas ouve lá! Por acaso os jogos fazem-te o jantar, beijam-te ou fazem amor contigo?”
Ele respondeu-lhe muito sério, como se fosse a coisa mais natural do mundo. – “Claro que não! E é por isso mesmo que eu também te amo a ti!”
O som que o corpo dela criou ao embater no chão, ficará para sempre na sua memória como o som de um coração despedaçado, sem piedade.

Dá para perceber que não tenho namorado neste momento, não dá? XD
Agora a sério, eu tive esta ideia depois de observar, durante anos, o comportamento de alguém que me é muito próximo. Foi uma coisa do momento. Não me levem a mal e espero que nunca ninguém tenha passado por uma situação semelhante.

Tu…

03_tuAcordo com um sorriso. Abro os olhos para te ver ao meu lado, dormindo calmamente, por vezes soltando pequenas risadas, que suponho serem causadas por um qualquer bom sonho que estejas a ter.
Acaricio o teu rebelde cabelo castanho e o teu rosto, tão sedoso como a pele de um bebé.
Sei que tenho de acordar-te, mas não quero interromper o sono que te embala.
Baixo o rosto de encontro ao teu, para te plantar um pequeno beijo na face direita. Contorces-te sonolenta, mas não pareces despertar. Esse teu pequeno gesto faz o meu sorriso tornar-se ainda maior.

Sou um cobarde, pois da minha boca nunca irás ouvir a mais pura verdade. Nunca te direi quantas vezes fico a ver-te dormir, quantas vezes fico parado no corredor enquanto tomas banho, só para ouvir a tua voz desafinada a cantar uma qualquer musica estrangeira que adoras, mas cuja letra não decoras com precisão. Se ao menos soubesses quantas vezes te quero abraçar no meio da rua, em frente a multidões, para lhes mostrar o quanto te amo. O quanto me fazes feliz.
Sem ti a minha vida não faria qualquer sentido!
Às vezes sinto-me sufocar. Penso que se um dia nos separarmos não saberei mais como viver, como pensar, como agir.
Tu és assim, uma parte vital de mim.
Tu és tudo o que eu preciso.
Tu…