Rotina

15_rotinaEle olhou para o relógio no monitor e reparou que já passavam cinco minutos das treze horas. Pressionou o botão Power, agarrou o seu casaco que estava pendurado na cadeira que ocupava e levantou-se para sair o escritório.
“Vou almoçar.”
Não aguardou a resposta do seu chefe que estava concentrado no trabalho à sua frente e que se limitou a acenar com a cabeça.
Saiu para o corredor e desceu pelo elevador, juntamente com outras cinco ou seis pessoas que ele não reconhecia mas que imaginou trabalharem no mesmo andar que ele.
Como era já costume, atravessou o parque a pé e dirigiu-se a um pequeno restaurante com um placard reluzente com as palavras “Restaurante Sabor Tradicional”. Entrou silencioso e dirigiu-se ao fundo do salão. A sua mesa estava vaga, como aliás sempre acontecia, encostada à parede bege e sobrevoada por uma grande pintura a óleo que retratava a cidade no século anterior.
Sentou-se de forma a ficar de frente para a entrada e abriu o menu na primeira página. As diárias, escritas num chamativo post-it amarelo eram “Pescada cozida com ervilhas”, “Carne de Porco à Alentejana” e “Crepe vegetariano”.
Voltou a fechar o menu, mesmo a tempo de ser recebido com um sorriso pela empregada de mesa que vinha recolher o seu pedido.
“O que vai ser hoje, senhor?”
“Peixe, por favor!”
“E para beber?”
“Vinho tinto.”
“Vai desejar sopa? Antes ou depois?”
“Antes.”
“Com certeza! Eu trago já de seguida.”
Já há uns meses que visitava de segunda a sexta feira aquele restaurante, mas nunca chegara a saber qual o nome de nenhum dos funcionários, assim como tinha a certeza que eles não sabiam o seu.
Reparou que um dos homens que descera consigo no elevador estava sentado numa das mesas perto da entrada, conversando animadamente com mais dois homens e três mulheres. Não sabia ao certo se os outros também tinham descido consigo, mas também não quis pensar demasiado nisso.
A empregada de mesa trouxe–lhe um prato de sopa de legumes e pousou-o delicadamente na mesa, desejando-lhe um bom apetite.
Enquanto elevava a primeira colherada à boca, reparou por momentos que uma outra jovem se sentava na mesa em frente à sua, de costas viradas para a coluna, o que fazia com que estivesse de frente para ele. Ela, assim como ele, tinha já quase que um lugar reservado. Sentava-se sempre no mesmo local, da mesma forma, à mesma hora.
A sua pescada foi rapidamente servida assim que terminou a sopa e às catorze e vinte horas saiu do restaurante e regressou ao escritório.

No dia seguinte, à mesma hora, voltou a sair para almoçar. Mais uma vez não reparou quem seguia no elevador consigo e ao chegar ao restaurante deu por si, novamente, a pensar se os outros cinco elementos da mesa mais vivaz trabalhavam no mesmo prédio que ele. Pensamento esse que rapidamente esvaneceu, como sempre, para o canto das insignificâncias do seu cérebro.
A sopa foi servida com o sorriso de sempre e ele saboreou lentamente cada colherada. Quando, minutos depois, a empregada levantou o prato vazio e lhe serviu os Panados com Arroz de Tomate, ele deu por si a sentir a falta de algo, sem saber exactamente o que era.
Terminou a refeição e olhou para a mesa à sua frente … vazia …
Ergueu um sobrolho, sem se dar conta disso, e questionou-se interiormente o que teria sucedido à ocupante habitual.
O relógio apontava as catorze e vinte horas e ele saiu religiosamente pela porta, depois de deixar o dinheiro na mesa.

Nos dias seguintes, estranhou a ausência da jovem que desde sempre se sentara à sua frente, mas com quem raramente cruzara olhares e nunca trocara mais do que um simples “Boa tarde”. Era-lhe bastante incomodativo sentar-se só no canto mais recôndito do restaurante, como se isso não lhe parecesse normal ou mesmo desejável.

O fim de semana chegou e consigo os dias em que ele não ia para o escritório, e, consequentemente não almoçava no “Restaurante Sabor Tradicional”.

Quando a segunda feira chegou, ele deu por si a ansiar pela hora do almoço.
Já dentro do elevador, falhou em perceber, uma vez mais, quem lá circulava, embora as suas vozes enchessem o pequeno cubículo descendente.
Entrou no restaurante, mais apressado do que habitualmente, sentou-se e deu uma olhada rápida no menu. Não tinha vontade de comer nada do exposto no cardápio e o seu estômago dava voltas e voltas, deixando-o com uma sensação estranha.
“Boa tarde! O que vai desejar hoje?”
A simpática empregada loira, usava hoje um batom vermelho que fazia sobressair os seus lábios finos.
“Hoje vai ser só sopa. Não estou muito bem disposto!”
“Mas o que o aflige? Precisa que lhe traga algo especial?”
“Não obrigada! A sopa deve fazer-me sentir melhor.”
Ela pareceu genuinamente preocupada enquanto virava costas e pedia ao cozinheiro uma sopa “super-caprichada”.
Cinco minutos depois tinha o prato à sua frente, mas não conseguiu sequer pegar na colher. O seu olhar estava fixo na mesa da frente, ansiosamente aguardando a chegada da sua mais fiel ocupante.
Ele não entendia o que se passava consigo. Não era como se eles fossem amigos, colegas ou sequer conhecidos. Não sabia o nome dela, a sua idade, onde trabalhava, o que fazia, do que gostava – à excepção de ler, porque trazia sempre um livro consigo – mas sabia que se não a visse rapidamente a sua vida não voltaria a ser a mesma. Ela tinha quebrado o ciclo. A rotina. A mecânica da sua vida. A sua roda tinha parado de girar, para depois começar a rodar no sentido contrário. Ele precisava desesperadamente que essa roda girasse na direcção certa novamente e isso só aconteceria quando ela voltasse a sentar-se ali!

O seu coração pareceu saltar dentro do peito quando o vulto reconhecível da jovem se aproximou e ocupou o seu lugar. Ela parecia fraca e doente mas olhou-o e carinhosamente sorriu na sua direcção.
“Boa tarde!”
Senti a sua falta … Era o que ele queria dizer, mas ao invés continuou a olhá-la e depois convidou-a a sentar-se na sua mesa.
Ela olhou-o curiosa e depois de uns segundos algo constrangedores, pegou na sua bolsa branca e ocupou permanentemente um dos muitos lugares vazios no coração dele.

Submetido ao desafio “Encontros e Desencontros” da Fábrica de Histórias

Sexta-feira

11_sextafeiraO autocarro aproximava-se. Ela pressionou o botão de pausa no leitor de Mp4 e retirou os auscultadores dos ouvidos, apenas por delicadeza. Depois levou uma das mãos ao passe que não chegara sequer a retirar do bolso do casaco, desde que o colocara lá nessa manhã. O chiar dos pneus com a paragem da viatura, fê-la estremecer um pouco. Subiu os três degraus metálicos, a seguir a um senhor de fato e gravata, que sorria abertamente ao motorista, como se tivesse acabado de receber uma promoção. Esgueirou-se pelo corredor central do veículo, conhecendo já todos os cantos daquele transporte bastante confortável, mas por vezes demasiado cheio de passageiros barulhentos. Ocupou os dois bancos que se encontravam depois da porta traseira do veículo. O seu local de eleição.
O autocarro foi-se enchendo a cada paragem que fazia, como sempre acontecia. Mal se aproximou da escola secundária, ela suspirou. Tinha chegado a hora dos miúdos fazerem um escabeche, conversando animadamente uns com os outros, aos gritos. A felicidade deles, no entanto, nunca a conseguia contagiar. Ela que odiava o seu trabalho e que tinha sempre pretensões de pensar demasiado nos seus problemas, para sequer poder tentar distrair-se ou alegrar-se com os risos contagiantes dos que a rodeavam. Ao invés disso, chegava a irritar-se por não conseguir ouvir a música que tocava nos seus ouvidos.
O primeiro rapaz a entrar, foi a correr para o fundo do autocarro e estendeu-se sob os cinco assentos lá encontrados, auto-denominando-se o rei da última fila. Os seus amigos, uma rapariga de cabelos muito loiros e dois rapazes com os olhos tapados pelos cabelos demasiado longos e cobertos de gel, prontificaram-se a saltar para cima do amigo gritando “BANZAI”, provavelmente sem saberem o significado da palavra. Muitos outros lhes seguiram as pisadas e ela nunca entendeu porque as crianças pareciam gostar tanto de viajar na parte de trás do veículo, quando a parte da frente muitas vezes estava quase vazia. O motorista, esse, devia agradecer esse curioso facto, já que pelo menos não tinha de se preocupar tanto com os seus jovens passageiros.

A noite começava a antever-se no horizonte e ela esfregou os olhos que pareciam estar a ter dificuldade a ajustar-se à falta de luz. A algazarra era enorme e ela suspirou uma vez mais. Ainda teria de aguentar mais meia hora daquele inferno antes de chegar ao seu destino, e a maioria dos que ali estavam não sairiam antes de si, por isso não havia grandes hipóteses de haver silêncio nos próximos minutos.
A senhora de idade que estava sentada no banco à sua frente, tossiu uma vez mais e levou um lenço de pano aos lábios, para aparar o catarro que não a deixava descansada um só segundo. Mesmo assim ela não parava de falar com a sua companheira, uma senhora de quarenta e poucos anos que a escutava com atenção, enquanto ela contava a sua juventude e os momentos felizes que vivera com o seu falecido Afonso (marido).
O homem do fato e gravata, sentado na fileira do outro lado, falava alegremente ao telemóvel, fazendo planos com a namorada para o fim-de-semana que se avizinhava. Parecia não caber em si de felicidade.

Ela, sempre focada nos seus problemas, não conseguiu evitar uma pontada de inveja. Como desejava também ter planos para um fim-de-semana a dois … se ao menos não tivesse acabado com o último namorado nem três dias antes.
Os risos nunca pararam, como uma música de discoteca que, ao princípio odiamos e depois entranhamos. Devia ser contagiante.
Devia!

Ela deu por si a chorar. As lágrimas começaram a escorrer-lhe rosto abaixo sem que lhes desse permissão para tal. Como que num complô, a bateria do Mp4 acabou e a música que até a aí fizera o seu cérebro trabalhar sem parar, era agora substituída pelo silêncio, invadido pelo estranho mundo à sua volta e que ela negara até ali. Como uma onda de 2 metros que a atingiu de frente numa altura em que ela não sabia sequer nadar.
A alegria dos outros era-lhe dolorosa, mas ao mesmo tempo, estranhamente confortante.
O que estava ela a fazer da sua vida? Matando-se a trabalhar num ramo que detestava, com um patrão que desprezava e que nunca lhe dava o devido valor, a ganhar um salário de miséria. Mas o pior não era isso. O pior era que levava consigo os problemas da empresa, para casa, para a sua vida fora do trabalho. Afastava tudo e todos com o seu humor inexistente e a sua irritabilidade persistente. Tudo porque não conseguia limpar a sua cabeça dos problemas que a afectavam oito horas por dia, cinco dias por semana.
Que estava a fazer? A arruinar-se? O que podia e o queria fazer para mudar? Não era tarde demais … não podia ser!
O autocarro parou. Ela olhou pela janela e viu que tinha chegado à sua paragem. Aquela inalterável paisagem que a atormentava todos os dias, sempre igual, e ela, imutável, sempre no mesmo ciclo sem fim. Devia levantar-se e sair, sabia que era isso que era suposto fazer, que era isso que o seu corpo estava programado para fazer, mas era mesmo isso que queria?

As portas fecharam-se.
Ela continuou sentada no mesmo assento, enquanto o veículo prosseguiu marcha.
Sentiu-se aliviada! Respirou fundo e fechou os olhos. Embora lá fora a escuridão preenchesse o céu, ela sentiu-se invadida por uma estranha e calorosa luz. Seguiria viagem e sairia na última paragem, se desejasse, voltaria a entrar noutro transporte e seguiria viagem até onde o coração a mandasse. Não pararia até se sentir satisfeita.
Afinal, era sexta-feira e ela tinha um fim-de-semana inteiro pela frente …

Texto inspirado pelo desafio “Uma viagem inesquecível” da Fábrica de Histórias.

Nota: Vejam também Uma viagem especial, uma história bem contada e muito bem escrita.

Pequenas Coisas

Catarina, uma jovem mulher com não mais de 29 anos, recostou-se na cadeira de madeira da sua sala de jantar, suspirando profundamente e levando uma mão à cabeça enquanto o a outra mão caia a seu lado.
Vários papeis se prestavam em cima da mesa despida, num emaranhado semelhante à secretária de uma empresa muito caótica, acompanhados de uma velha máquina calculadora que ela tinha recebido na escola quando, aos 13 anos, teve direito ao subsídio de apoio às famílias mais carenciadas que não conseguiam fazer frente às despesas do material escolar dos filhos. Uma gasta esferográfica, deslizou lentamente pelo lado da mesa, até cair no chão, sem grande alarido.
– “Estou tão farta desta merda!”
A cena era igual a tantas outras. Podia até dizer-se que o ciclo de repetição era de sensivelmente 30 dias. Todos os meses, quando chegava a altura de gerir o orçamento familiar para pagar todas as despesas, o dinheiro era sempre escasso. Há muitos anos que ela não sabia o que era poupar uns míseros Euros todos os meses.
A renda da casa, embora não muito alta para a zona onde se encontravam, era a maior fatia das despesas, seguida daquelas outras que não se podiam cortar por mais que se desejasse fazê-lo: Electricidade, Água e Saneamento, Gás e, um pouco a esticanço, o serviço de Telefone e Internet mais barato que conseguiram encontrar, porque o miúdo precisava fazer pesquisas para os trabalhos de escola e porque, tanto ela como o marido, também gostavam de navegar um pouco na Web. Um desperdício de dinheiro, por assim se dizer, mas um pequeno prazer que, bem vistas as coisas não era a maior despesa da casa – não que isso fosse desculpa para despender esse dinheiro todos os meses -. Já para não falar nos seguros, no combustível dos automóveis, porque, numa cidade como aquela, os serviços públicos não eram alternativa e um sem-número de outras pequenas coisas.
Tudo isto e mais as normais despesas de comida, eventuais compras de vestuário e calçado, sim porque o miúdo tinha uma propensão para romper calças e gastar ténis que era uma loucura.
No fim de contas, o ordenado do marido e o subsídio de desemprego dela, mal chegavam para cobrir as despesas. Todos os meses ela tentava arranjar soluções práticas para pouparem mais um pouco, mas nunca parecia ser o suficiente. Alguns meses antes, e para grande tristeza do seu filho, vira-se forçada a cortar o serviço de televisão e tinha a impressão que não tardaria muito a terem mesmo de cortarem no telefone e na internet.
A poucos e poucos tudo ia desaparecendo.
Era certo que nenhuma destas coisas são um bem essencial, mas «o hábito faz o monge» e quando já estamos acostumados a ter um certo nível de vida, ter de abdicar de tudo, a poucos e poucos, custa muito … muito mesmo!
Já para não falar na dificuldade em encontrar trabalho. Catarina estava já desempregada há oito meses e cada vez parecia menos credível a possibilidade de encontrar trabalho na sua área de formação. Pondo de parte essa possibilidade, ela já tinha mesmo tentado encontrar vaga noutras áreas, mas nem aí teve muita sorte. A todo o lado onde ia, ofereciam-lhe o salário mínimo, a maior parte das vezes, com um horário irregular e em condições precárias de trabalho. Tinha podido dizer que não até aí, já que estava a ganhar mais no desemprego, mas essa ajuda estatal acabaria rapidamente e então ela teria de aceitar qualquer coisa. Quando isso acontecesse, a família iria sofrer ainda mais. Com um orçamento cada vez mais reduzido, o que teriam de cortar depois de tudo o que era supérfluo desaparecer?
Catarina sentiu pequenos dedos atracarem-se por cima dos seus olhos. – “Adivinha quem é?” – Ela sorriu.
“Quem será? Não sei se consigo adivinhar.” – Ouviu as risadas do seu filho e este som encheu-a de alegria.
“Sou eu mamã!” – Rapidamente o rapaz retirou as mãos do seu rosto e saltou para o lado dela, esbanjando alegria naquele pequeno rosto.
“Ah pois é! Quem diria que aquelas mãos pertenciam ao menino mais lindo do mundo?” – O sorriso dele aumentou ainda mais e a mãe babada ponderou sobre esse misterioso facto de a felicidade poder crescer e crescer, até ao infinito, sem que uma pessoa alguma vez se pudesse sentir cansada com isso.
O pequeno rapaz saltou para o colo da mãe, com a ajuda dela, e colocou os seus braços à volta do pescoço da mulher que mais o amava no mundo. – “Amo-te mamã!” – O pequeno beijo na bochecha que se seguiu a estas palavras, resultou numa explosão de fogo-de-artifício no coração daquela mulher que parecia, momentos antes, ter perdido toda a esperança de uma vida melhor.
Ela nunca entendeu ao certo como pequenos gestos como aquele tinham um impacto tão grande no seu íntimo.
Eram aquelas pequenas coisas que tornavam a sua vida maravilhosa.
Aquela era a verdadeira felicidade!

* Texto dedicado à minha Mãe, a mulher que sacrificou tudo para dar uma vida melhor aos filhos e para quem a vida sempre trouxe muitos dissabores.