Desabafos de uma inconformada

06_desabafosFazia parte da sua rotina diária visitar os sites de ofertas de emprego e concorrer aos anúncios para os quais era qualificada e que ficavam na sua zona e arredores. Aquele dia foi como outro qualquer e ela respondeu a três anúncios, o que era mais do que o normal, já que não costumavam haver muitas ofertas de emprego para aquela zona do país. Um desses anúncios não especificava email ou morada, apenas exibia um número de telefone para contacto. Prontificou-se a marcar o número e foi rapidamente atendida. Deu-se conta que se tratava de uma agência de emprego, na qual ela até já estava inscrita, fizeram-lhe perguntas quanto aos seus conhecimentos de línguas e outras aptidões que estavam descritas também no site do anúncio. Ela sabia ter todas as qualificações e até mais do que era pedido, por isso não houve problemas. Uma entrevista ficou marcada para o dia seguinte às 10h30m, numa cidade vizinha daquela onde residia.
No dia seguinte levantou-se mais cedo do que o que estava habituada. Estar em casa, desempregada, há cinco meses tinha dessas coisas.
Chovia com intensidade e ela ficou encharcada só de ir até à paragem de autocarro. Como já era hábito, o transporte público em questão chegou atrasado, em parte devido a ser dia de feira e ao consequente aumento de trânsito no centro da cidade. O preço da viagem foi de 2,30€, dinheiro que ela pensou ser bem gasto para a possibilidade de um bom emprego na sua área de formação.
A viagem foi longa, mas nada aborrecida. Uma senhora de idade sentou-se ao seu lado e predispôs-se a contar-lhe toda a sua vida, sem que ela percebesse muito bem porquê ou o que tinha iniciado tal desabafo.
Quando o autocarro atracou na central de camionagem, ela desceu rapidamente e atravessou a rua. O escritório que procurava era mesmo ali.
Deu com o nariz na porta! Que é como quem diz que descobriu que os empregados não abrem a loja a horas, já que o papel afixado estipulava que a loja devia ter aberto cinco minutos antes.
Decidiu ir a um café ali mesmo ao lado e tomar qualquer coisa para aquecer. Tinha os pés encharcados e estava a sentir-se um pouco tonta, por alguma razão que não entendia. Aproveitou para saciar o seu vício de chocolate e comprou uma saqueta de M&M, que reparou ser bem mais barata que na máquina de venda automática que havia na central de camionagem do outro lado da rua. O empregado do café foi extremamente simpático e conseguiu pô-la bem disposta naquele dia chuvoso.
Minutos depois voltou à loja da agência. Já estava aberta! Abriu a porta que estava encostada e entrou. Ao princípio pareceu-lhe não estar lá ninguém, mais uma vez percebeu que precisava substituir as lentes dos óculos, já que sob olhar mais atento viu uma senhora ao fundo da sala. Foi com alguma surpresa, no entanto, que ouviu a voz de outra mulher, vinda de trás de um biombo vermelho com vidro opaco e que quase não deixava antever a secretária por detrás.
“Aguarde um momento.”
“Com certeza!” – Ficou de pé e a mulher em questão não tardou a aproximar-se da mesa da recepção.
“Sim?” – Foi directa ao assunto, quase como se estivesse incomodada pela presença à sua frente.
“Eu liguei ontem por causa de um anúncio no site de emprego. Pediram-me para vir cá hoje a uma entrevista. Para a vaga de Assistente Administrativa.”
A funcionária da agência sentou-se em frente ao monitor. Não a convidou a sentar-se e isso deu-lhe logo a sensação que algo não estava bem ali. – “Quais são as suas habilitações literárias?”
“12º ano.” – Sem ter tempo de especificar mais, ouviu a resposta azeda da funcionária.
“Pois, mas o cliente quer alguém com formação.”
Por momentos ela ficou sem palavras. Sabia exactamente o que a funcionária estava a sugerir, mas não se daria por vencida. – “Mas eu tenho formação para administrativa, nível 3.”
“Não chega! O cliente quer alguém com formação superior.”
“Mas no anúncio não especificava nada disso e eu ontem liguei para cá e não me falaram nisso.”
“Pois, ao princípio o cliente não especificou, mas ontem enviamos-lhe alguns currículos e ele decidiu que queria alguém com mais estudos.”
Queriam alguém com formação superior para Assistente Administrativa? Ao que o mundo tinha chegado. Se ela, que tinha um curso de nível 3 tinha todas as capacidades para exercer a função de Administrativa e já pediam pessoas com cursos superiores para assistentes que iriam ganhar o salário mínimo, o mundo estava mesmo perdido. Ao que tínhamos chegado!
Ela ficou mais uns segundos a olhar para a funcionária, pensando seriamente em erguer a mão e plantar-lhe um estalo naquele rosto nada apologético. Podiam ao menos ter o bom senso e a educação de lhe pedir desculpas por a terem feito vir até ali perder o seu tempo e gastar o seu dinheiro para nada. Mas não! Ainda por cima mostrava-se arrogante, como se não fosse nada com ela. Precisou de todas as suas forças para não perder a racionalidade.
“Não tem mais propostas de emprego na área?”
“Neste momento não!”
Relutante, virou costas, despedindo-se com o máximo de educação que conseguia usar naquele momento, e caminhou para fora da loja. Quando chegou ao exterior, suspirou e o seu rosto deve ter-se contorcido de raiva, já que um senhor que por ali passava a olhou com surpresa. Teve uma vontade enorme de esmurrar alguém e sai para a chuva, sem saber muito bem o que devia fazer a seguir.
Sentia-se completamente ultrajada! Tinha gasto o dinheiro que não tinha para ir àquela “entrevista”, com um pouco de esperança que aquele pudesse ser o seu passaporte para o mercado de trabalho uma vez mais. Para quê? Para ter uma surpresa daquelas?
Um pedido de desculpas … algo tão simples teria chegado para ela não se sentir tão mal. Mas com a falta de trabalho que havia e a quantidade de pessoas desesperadas por um miserável salário mínimo, não era de estranhar que os patronos se dessem ao luxo de negar a candidatura a pessoas com a formação e a experiência. Sentiu-se horrível por o fazer, mas desejou de todo o coração que quem quer que o patrão fosse, tivesse muito azar com a pessoa que escolhesse.

Bucha e Estica

02_bucha-e-esticaAo colocar as compras no tapete da caixa do hipermercado, deu-se conta que, mais uma vez, tinha adquirido mais chocolates do que o que devia, mas isso não a fez arrepender-se.
Podia não ser viciada em tabaco, álcool ou drogas, mas tinha de admitir que o chocolate era o seu único vício.
A menina que se encontrava na caixa era sua conhecida. Uma rapariga franzina, com o cabelo liso e um pouco alourado. Sorriu-lhe e cumprimentou-a, antes de começar a passar as compras em frente ao leitor de códigos de barra.
– “Outra vez?”
A pergunta surpreendeu-a e ela olhou intensamente para a menina da caixa, com uma expressão interrogativa.
– “Levas outra vez mais bolinhas!”
Por bolinhas ela referia-se as ‘Pintarolas’, algo que, por acaso, ela nem comprava já há bastante tempo. – “Estás enganada. Eu não costumo levar estes. ”
– “Se não são esses são outras bolinhas de chocolate.” – “Olha que assim engordas muito. ”
Sorriu. Afinal que fazer quando mais uma vez a criticavam, directa ou indirectamente por ser obesa?
– “Queres um bocado?” – Perguntou sem qualquer intento sarcástico.
– “Não obrigada! Não quero engordar mais. As minhas calças já não me servem!”
Olhou-a com atenção. Onde estava essa dita gordura? A rapariga parecia quase uma anoréctica.
Decidiu não dar mais conversa para aquele tema. Pagou a conta e foi-se embora.
Mais tarde, naquele mesmo dia, viu a menina da caixa com umas calças de cetim preto que lhe caiam, literalmente, pelas pernas abaixo de tão largas que eram. E pensou uma vez mais: «Onde está essa dita gordura?»

Mudanças

01_mudancasO sol brilhava intensamente, quase cegando-a enquanto atravessava a passadeira para peões. Albergando-se sob a sombra de uma árvore, pousou os dois sacos, que trazia consigo, no chão.
Do bolso exterior da preta bolsa à volta dos seus ombros retirou um pequeno leitor de MP3 com auriculares, colocando-os na respectiva orelha.
Circulando a rotunda, apareceu um autocarro de cor branca, com riscas verdes em volta e com um pequeno, e, quase ilegível, papel colado ao vidro com o destino da carreira escrito.
Erguendo dois dedos à sua frente, fez paragem. O veículo parou e as portas abriram-se com dificuldade, ela apressou-se a subir o alto degrau e deslizou o passe no pequeno aparelho da companhia rodoviária. Rapidamente se dirigiu a um lugar vazio, mas não sem antes quase perder o equilíbrio quando o autocarro circundou uma outra rotunda.
Finalmente teve a oportunidade de ligar o pequeno leitor de música. O volume inicial estava em 10, mas rapidamente ela se apercebeu de que não só não percebia qual a música que estava a tocar, como mais parecia que nada estava a escutar.
O problema não estava no aparelho diminuto, mas sim no grande autocarro, cuja idade devia ultrapassar em muito os 25 anos, e que, como muitos outros naquelas localidades, já tinha vindo em segunda mão de outros países.
O barulho produzido era ensurdecedor. De cada vez que o motorista acelerava, o veiculo dava uma espécie de soluços bem audíveis.
A agora passageira, limitou-se a pensar se o autocarro chegaria inteiro ao destino. Aumentou o volume para 20, e mesmo assim podia dizer que não conseguia ouvir de feição toda a música.
Os outros dois únicos passageiros conversavam animadamente à sua frente:
– “Sabias que fulana fez isto, isto e isto?”
– “Não acredito! E ouviste falar daquele a quem aconteceu isto, aquilo e algo mais”
As conversas do costume…
Ao passarem por cima de uma ponte, o tema mudou, mas não deixou de ser o mesmo de sempre. “Pobre daquela senhora que se atirou daqui abaixo no outro dia.” – “Que Deus a perdoe.” – Aquela passagem por cima do rio tinha adquirido uma nova fama:
“Ponte de onde aquela senhora de idade se atirou” – Já ninguém sabia qual o nome da dita ponte.
Mas o surpreendente era porque ainda falavam desse tema. Era algo horrível sim, mas já tinha passado bem mais de um mês desde tal acontecimento. Será que ainda era considerado novidade. Será que naquela terriola não havia nada de mais novo interessante para discutir.
Uma vez mais a rapariga apercebeu-se de que vivia numa terra que, embora tivesse tudo para ser grande, parecia parada no tempo. Não evoluía, não mudava. Não nada! Era a mesma todos os dias…