Tenho saudades tuas.
Era assim que começava a carta, aquele pedaço de papel pousado em cima da mesa há mais de um mês, à espera de ser terminado, ou sequer, enviado. A esferográfica azul repousava em cima do papel, imóvel desde que ali tinha sido colocada, solitária, ardendo pelo contacto dos dedos que fariam deslizar a sua ponta pelo papel amargurado, ressequido e deformado pelas muitas lágrimas que lá tinham sido vertidas, como as palavras que nunca seriam escritas, expressas, recordadas.
Uma brisa fresca esgueirou-se pelo quarto adentro, acariciando cada móvel, cada livro, cada peça de bijutaria, erguendo levemente o papel que ansiava ser enfiado no envelope, endereçado a quem de direito.
A porta estremeceu com o contacto das mãos delicadas, a cadeira chiou com o peso pouco pesado da sua ocupante, a caneta reluziu quando foi levantada e apertada entre dedos esqueléticos, o papel vibrou sobre a tinta que escorria pelas suas linhas invisíveis.
Lembras-te da última vez que nos vimos?
Eu não consigo esquecer-me, do teu sorriso maravilhoso, do calor dos teus lábios na minha bochecha enquanto me dizias adeus, com uma risada que ainda hoje me arrepia a espinha e me aperta o coração. Sempre te disse que o adeus era uma palavra demasiado solene, demasiado definitiva, mas tu sempre achaste isso ridículo. Para ti, o adeus era apenas temporário, como um até já. Compreendi-te então, e ainda hoje te compreendo e às tuas palavras esperançosas.
O papel ressentiu-se com a humidade salgada das lágrimas que, mais uma vez, salpicavam a sua superfície, para sempre marcando-o.
Sabes que demorei semanas a escrever esta carta? Sempre com medo do que poderia dizer, de como te poderia ferir quando não é essa a minha intenção. Nunca foi.
Se pudesse iria agora mesmo ter contigo, abraçar-te, dizer o quanto te amo, o quanto te quero de volta comigo, mas isso seria injusto da minha parte, não seria? Não posso esperar ter-te sempre comigo, afinal tens direito a seguir o teu caminho, a errar, a cair e a erguer-te de seguida, com mais determinação do que anteriormente.
Só quero que saibas que, aconteça o que acontecer, não importa quão magoado estejas, eu estarei sempre aqui à tua espera. Por favor nunca te esqueças disso. Nunca esqueças como te quero bem e de como faria tudo por ti.
Se um dia te sentires perdido, lembra-te que tens sempre um sitio para onde voltar, que a minha porta, não, que esta porta, a de nossa casa, a casa dos nossos pais, estará sempre aberta para te receber.
Não vou dizer que me sinto só, pois seria injusto, mas as saudades são muitas e todos os dias olho para as fotos espalhadas pelo corredor, vejo os vídeos de olhos colados ao televisor.
Sabes que não consigo mais ver filmes de guerra? Só de pensar que aquele poderias ser tu, que poderia ser a tua história. Nem quero pensar nisso!
Por favor volta são e salvo. É tudo que te peço.
A esferográfica espremeu o resto da sua tinta para o papel, sob a pressão avassaladora dos dedos trémulos e suados.
Com muito amor, da tua irmã.
As lágrimas caíram pesadas sobre o papel e as mãos quentes tentaram limpar aquelas manchas reveladoras do mais extremo estado de espírito, mas em vão. O papel secaria, mas seria óbvio o que ali tinha acontecido.
Dedos secos e inseguros dobraram a folha em harmónica e enfiaram-na no conforto de um envelope depois selado, já com o endereço marcado pela mesma esferográfica que cuspia a sua última tinta.
O papel e o seu novo conforto, o envelope, seguiram caminho ao lado do corpo da atarefada rapariga, que desceu as escadas do prédio e os enfiou, depois de alguma relutância, na ranhura do marco de correio que ficava estacionado a escassos metros da saída do prédio onde residira, até há um mês atrás, com o seu adorado irmão, que seguira para a guerra.
Aquela carta seguiu caminho pelos correios, com o peso da esperança, do amor e da saudade nela contida.
O envelope rejubilou ao ser rasgado e a carta enalteceu-se quando foi desdobrada e empastou-se ainda mais com as lágrimas que o receptor não conseguiu esconder por detrás da sujidade do seu rosto ferido. Que felicidade!
Querida irmã,
Também morro de saudades tuas …
Submetido ao desafio Saudade da Fábrica de Histórias.