“Um erro, várias culpas“, um conto de Ana C. Nunes
Se me fosse possível mudar uma só coisa em toda a minha patética vida, certamente que mudaria o facto de ter vindo para esta cidade.
Está certo que se tivesse nascido no seio de outra família, teria certamente sido muito mais feliz, especialmente se essa nova família não consistisse numa mãe abalada por depressões, e num pai embalado pelo álcool.
E na impossibilidade de alterar a minha genética, podia sempre alterar o facto de, quando um tio me perguntou se eu estava a ser maltratado pelo meu pai, eu ter mentido de forma tão convicta, que ele nunca mais tentou salvar-me das garras do odioso parente que se divertia a dar-me murros em sítios que a roupa tapava. Por outro lado, talvez a surra que o meu pai deu a esse meu tio, depois de eu ter ido fazer queixinhas, também tenha contribuído para que ficasse condenado a uma infância abominável.
No fundo, há muita coisa que eu próprio podia ter alterado, e muitas outras coisas nas quais eu nunca poderia mexer, por mais que quisesse. Enfim, com a minha mãe dizia: «Devo ter feito mal a muita gente na minha vida anterior, para merecer isto.»
É fácil dizer que gostávamos que as coisas fossem diferentes, e acreditem que várias vezes tentei mudá-las. Simplesmente não fiz com força suficiente, e acabaram por me embater na cara e mandar-me de costas contra a parede, onde fiquei a apodrecer até ter ânimo para tentar mais uma vez. E outra vez …
Mas ainda assim, do que mais me arrependo é de ter vindo parar a esta maldita cidade.
Mal completei os dezoito anos, desandei de minha casa como o diabo a fugir da cruz. Nem sequer me despedi em condições, acabando por deixar a minha mãe lavada em lágrimas, enquanto eu fugia como um louco do meu pai, que se lembrou de me perseguir quase cem quilómetros pela auto-estrada (por pouco não provocava um acidente em cadeia).
Não tenho orgulho por ter abandonado a minha mãe, mas foi ela que quis ficar. Eu bem lhe disse para vir comigo, mas ela disse que o pai a amava e que ela amava o pai, e que por isso não podia deixá-lo. Ainda hoje me sinto culpado pela morte dela, e isso nem me deixa dormir de noite. Não foi preciso uma semana, antes de ele a matar à pancada.
Eu ligava-lhe todos os dias, sem excepção, a uma hora que sabia que o meu pai não estaria em casa. Ela atendia sempre com as lágrimas a entupirem-lhe a fala e a visão, implorava-me para voltar para casa, mas sempre que eu lhe perguntava se estava bem, ela respondia simplesmente «Está tudo bem, meu filho. Só quero que voltes para casa.»
Se eu fosse mais astuto, teria percebido que eram exactamente essas as palavras que ela usava sempre que o meu pai a violentava, e teria ido a correr salvá-la, nem que tivesse de a forçar a sair daquela maldita casa. Mas o problema é que estava demasiado compenetrado na minha liberdade, na minha nova vida, nesta nova cidade.
Quando o meu tio me ligou, a dar-me as notícias, caí de joelhos e nem sei como depois me tornei a levantar.
O meu pai foi condenado, embora tivesse jurado até ao fim que «Nunca toquei num só cabelo da minha mulher. Nunca!», palavras dele. Aquela foi a primeira vez que realmente lhe fiz frente. Testemunhei contra ele, não que tal fosse necessário, tendo em conta as evidências mais que óbvias.
Infelizmente, no fim, o sentimento de vazio ficou, e a sentença não chegou a metade do que ele merecia.
No fundo sentia-me quase tão culpado como ele. Por vezes, nos meus pesadelos, era eu quem erguia os punhos cerrados para bater, incessantemente, na minha mãe, que acanhada e cheia de medo, se submetia às torturas físicas e psicológicas, de forma constante.
Ela própria dizia que as merecia: «Se calhar fiz alguma coisa que o deixou zangado.». A culpa era sempre dela, nunca dele. Mesmo quando o punho dele vinha na minha direcção, a culpa era dela, segundo a própria. Às vezes enervava-me com ela, mas no fim acabava a abraçá-la e a fazer promessas que acabaria por nunca cumprir.
Mas nos meus pesadelos, não só era eu o agressor, como ela também me culpabilizava: «É tudo culpa tua! Abandonaste-me. Como pudeste deixar a tua pobre mãe sozinha?», e nem quando acordava, banhado em suor e lágrimas, o sentimento de culpa se dissipava.
Depois do funeral, fui parar a um bar, onde bebi até cair para o lado, literalmente. Acabei a noite num hospital, e só semanas depois, com uma garrafa na mão e um espelho à frente da cara, percebi que me tinha tornado num bêbedo como o meu pai. Foi aquele reflexo que me levou à reabilitação, onde me mantenho até hoje, felizmente sem vacilar. Talvez o pouco tempo de vício tenha ajudado, mas gosto de acreditar que são os pesadelos que mantêm sóbrio, pois não quero nunca que se tornem uma realidade.
Mas como disse, se pudesse mudar uma só coisa na minha vida, seria certamente aquele dia. Não sairia de casa! Ficaria, e defenderia a minha mãe. Ou então, se tal fosse possível, arrastá-la-ia dali para fora comigo, para vivermos juntos, longe das garras daquele demónio que arruinou as nossas vidas.
Não há nada que lamente mais em toda a minha existência, mas, infelizmente, o tempo não volta atrás e temos de aprender a viver com os nosso erros, mesmo quando estes não são realmente culpa nossa.