Sexta-feira

11_sextafeiraO autocarro aproximava-se. Ela pressionou o botão de pausa no leitor de Mp4 e retirou os auscultadores dos ouvidos, apenas por delicadeza. Depois levou uma das mãos ao passe que não chegara sequer a retirar do bolso do casaco, desde que o colocara lá nessa manhã. O chiar dos pneus com a paragem da viatura, fê-la estremecer um pouco. Subiu os três degraus metálicos, a seguir a um senhor de fato e gravata, que sorria abertamente ao motorista, como se tivesse acabado de receber uma promoção. Esgueirou-se pelo corredor central do veículo, conhecendo já todos os cantos daquele transporte bastante confortável, mas por vezes demasiado cheio de passageiros barulhentos. Ocupou os dois bancos que se encontravam depois da porta traseira do veículo. O seu local de eleição.
O autocarro foi-se enchendo a cada paragem que fazia, como sempre acontecia. Mal se aproximou da escola secundária, ela suspirou. Tinha chegado a hora dos miúdos fazerem um escabeche, conversando animadamente uns com os outros, aos gritos. A felicidade deles, no entanto, nunca a conseguia contagiar. Ela que odiava o seu trabalho e que tinha sempre pretensões de pensar demasiado nos seus problemas, para sequer poder tentar distrair-se ou alegrar-se com os risos contagiantes dos que a rodeavam. Ao invés disso, chegava a irritar-se por não conseguir ouvir a música que tocava nos seus ouvidos.
O primeiro rapaz a entrar, foi a correr para o fundo do autocarro e estendeu-se sob os cinco assentos lá encontrados, auto-denominando-se o rei da última fila. Os seus amigos, uma rapariga de cabelos muito loiros e dois rapazes com os olhos tapados pelos cabelos demasiado longos e cobertos de gel, prontificaram-se a saltar para cima do amigo gritando “BANZAI”, provavelmente sem saberem o significado da palavra. Muitos outros lhes seguiram as pisadas e ela nunca entendeu porque as crianças pareciam gostar tanto de viajar na parte de trás do veículo, quando a parte da frente muitas vezes estava quase vazia. O motorista, esse, devia agradecer esse curioso facto, já que pelo menos não tinha de se preocupar tanto com os seus jovens passageiros.

A noite começava a antever-se no horizonte e ela esfregou os olhos que pareciam estar a ter dificuldade a ajustar-se à falta de luz. A algazarra era enorme e ela suspirou uma vez mais. Ainda teria de aguentar mais meia hora daquele inferno antes de chegar ao seu destino, e a maioria dos que ali estavam não sairiam antes de si, por isso não havia grandes hipóteses de haver silêncio nos próximos minutos.
A senhora de idade que estava sentada no banco à sua frente, tossiu uma vez mais e levou um lenço de pano aos lábios, para aparar o catarro que não a deixava descansada um só segundo. Mesmo assim ela não parava de falar com a sua companheira, uma senhora de quarenta e poucos anos que a escutava com atenção, enquanto ela contava a sua juventude e os momentos felizes que vivera com o seu falecido Afonso (marido).
O homem do fato e gravata, sentado na fileira do outro lado, falava alegremente ao telemóvel, fazendo planos com a namorada para o fim-de-semana que se avizinhava. Parecia não caber em si de felicidade.

Ela, sempre focada nos seus problemas, não conseguiu evitar uma pontada de inveja. Como desejava também ter planos para um fim-de-semana a dois … se ao menos não tivesse acabado com o último namorado nem três dias antes.
Os risos nunca pararam, como uma música de discoteca que, ao princípio odiamos e depois entranhamos. Devia ser contagiante.
Devia!

Ela deu por si a chorar. As lágrimas começaram a escorrer-lhe rosto abaixo sem que lhes desse permissão para tal. Como que num complô, a bateria do Mp4 acabou e a música que até a aí fizera o seu cérebro trabalhar sem parar, era agora substituída pelo silêncio, invadido pelo estranho mundo à sua volta e que ela negara até ali. Como uma onda de 2 metros que a atingiu de frente numa altura em que ela não sabia sequer nadar.
A alegria dos outros era-lhe dolorosa, mas ao mesmo tempo, estranhamente confortante.
O que estava ela a fazer da sua vida? Matando-se a trabalhar num ramo que detestava, com um patrão que desprezava e que nunca lhe dava o devido valor, a ganhar um salário de miséria. Mas o pior não era isso. O pior era que levava consigo os problemas da empresa, para casa, para a sua vida fora do trabalho. Afastava tudo e todos com o seu humor inexistente e a sua irritabilidade persistente. Tudo porque não conseguia limpar a sua cabeça dos problemas que a afectavam oito horas por dia, cinco dias por semana.
Que estava a fazer? A arruinar-se? O que podia e o queria fazer para mudar? Não era tarde demais … não podia ser!
O autocarro parou. Ela olhou pela janela e viu que tinha chegado à sua paragem. Aquela inalterável paisagem que a atormentava todos os dias, sempre igual, e ela, imutável, sempre no mesmo ciclo sem fim. Devia levantar-se e sair, sabia que era isso que era suposto fazer, que era isso que o seu corpo estava programado para fazer, mas era mesmo isso que queria?

As portas fecharam-se.
Ela continuou sentada no mesmo assento, enquanto o veículo prosseguiu marcha.
Sentiu-se aliviada! Respirou fundo e fechou os olhos. Embora lá fora a escuridão preenchesse o céu, ela sentiu-se invadida por uma estranha e calorosa luz. Seguiria viagem e sairia na última paragem, se desejasse, voltaria a entrar noutro transporte e seguiria viagem até onde o coração a mandasse. Não pararia até se sentir satisfeita.
Afinal, era sexta-feira e ela tinha um fim-de-semana inteiro pela frente …

Texto inspirado pelo desafio “Uma viagem inesquecível” da Fábrica de Histórias.

Nota: Vejam também Uma viagem especial, uma história bem contada e muito bem escrita.